Euclides da Cunha

Eu não tenho vocação para a espada, a arma que eu sei manejar é a pena.

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02/05/2012

  José Honório de Sylos (Brasiliófilo)

Nesta crônica de José Honório de Sylos, não muito conhecida, publicada em “O Rio Pardo”, de 26 de junho de 1936, Euclides surge como um personagem irritadiço, estranho, correto, nervoso, cumpridor de seus deveres sociais e conjugais, ao lado de um tipo popular feiíssimo e boníssimo.

Entrego-lhes a crônica do erudito funcionário municipal, com alguns cortes, pela falta de espaço.

“Sem que se soubesse de onde houvera provindo, remanesceu nesta cidade um homenzinho, que em tudo deveria provocar a curiosidade popular.

Isto foi no dealbar deste século quando mais ativos estavam os trabalhos da reparação da ponte metálica e, portanto, quando maior era a tensão de espíritos de Euclides da Cunha e mais irritabilidade apresentavam os seus nervos, governados pela lua e variações atmosféricas.

Manuelzinho das Crianças é como todos conheciam o ádvena. Tipo das ruas de dificílima descrição, era de estatura menos que meã, corpo emagrecido, canelas finas, andava descalço, chancas grandes, terminadas por dedos carrasquentos e arreganhados. Suas roupas de tecido barato, remendadas ou ainda novas, eram sempre asseadas. Nunca vestia paletó, e a camisa de algodãozinho alvejava. Não se decifrou, nunca, o mistério daquela vida. Não andava esmolando e jamais se soube sob que teto vivia. O certo é que não incomodava a ninguém e era de uma suma utilidade nas casas de família, onde havia crianças.

Uma feiúra o Manuelzinho das Crianças, e, se não fosse já um símile muito sovado eu diria que ele era cópia fiel de uma figurinha de caixa de fósforos de cera. (...)

Quem seria capaz de dizer que uma contextura física pouco simpatizante e desprotegida pela natureza ocultava um coração de ouro, meigo, raro, pelo extremado afeto com que amimava as crianças? (...) Em casa de rico ou de pobre, onde brincavam e choravam crianças, o Manuelzinho estava rente com elas. Não se acreditaria que, com aquela cara de poucos amigos, tivesse o condão secreto de acariciar, mimar e embelecer esses  entezinhos caprichosos, cheios de manhas e vermes intestinais.(...)

Euclides da Cunha, era hábito seu sair da cama, invariavelmente, na hora em que os surucuás  começavam a cantar. Tomava café às pressas e rumava para o rio, antes dos operários darem começo aos trabalhos e, andando de um para outro lado, ora inspecionando o serviço  dos pedreiros, ora o dos ferreiros, permanecia o dia inteiro, sem excetuar domingo, sem dia santo.

Só depois das ave-marias, com o escuro, é que voltava para casa.

Nunca viu o Manuelzinho das  crianças, porque vivendo num centro onde não era compreendido, pouco se lhe dava com a sociedade no cansativo trabalho de engenheiro e sonhando com  Os Sertões, o livro que lhe conquistaria fama universal. Entretanto, havia mais de um ano que o Manuelzinho freqüentava diuturnamente a casa do escritor, atraído pelas doces e belas criaturinhas, que eram o Solon e o Euclidinho. Era um grande regalo para siá Aninha (então, Mme. Euclides) que encontrara na pessoa do Manuelzinho o pajem cuidadoso, vigilante e incomparável de seus dois filhinhos, aos olhares de quem as crianças passeavam pelas ruas e brincavam no quintal. Dava-lhe azo de entreter-se mais tempo no espelho e aparamentar-se para tornar-se gamenha.

O  grande escritor por uma originalidade de gênio desconhecia das cousas de seu lar, onde reinava a mãe de seus filhos. Cumpridor severo dos deveres sociais, não o era menos das obrigações  conjugais e, não obstante as pequenas rusgas e a sempre invocada incompatibilidade de gênios, muitas vezes os dous navegavam em mares de rosas.

Para Euclides o dever estava acima de tudo. Os trabalhos da ponte metálica e a composição de seu famoso livro o tornavam abstraído, vivendo num mundo à parte, não se esquecendo de pagar pontualmente as contas de fornecimentos no fim do mês, avultando sempre a verba dos artigos de tafularia feminina.

Ponto nas indiscrições.

Retorno ao Manuelzinho das Crianças, que, como acima ficou dito, era um cifrão para Euclides, que ignorava a existência do pajem de seus filhinhos, desconhecedor como era das cousas, que não tivessem relação imediata com as duas principais preocupações.

Em noite trevosa, desencadeou-se sobre a cidade uma trabuzana d’água medonha. Fuzilavam coriscos e retumbavam trovões, estremecendo as casas. Euclides, dominado pela ânsia de aperfeiçoar o livro, que lhe era a idéia absorvente naquele momento, sentado à sua secretária, enchia tiras e mais tiras de papel, sem perceber a tempestade, surdo aos rumores dos elementos em revolta. O Manuelzinho por tais horas andava sururucando pelas ruas e, encontrando aberta a porta da casa onde residia o escritor, foi entrando sem pedir licença, devagarinho, muito quieto, postando-se estaticamente de braços cruzados e olhos muito arregalados diante de Euclides que, sem dar acordo do intruso, continuava escrevendo, até que o Manuelzinho exalou um leve suspiro. Assustado com aquela visão inesperada, que em seu espírito atingia proporções monstruosas e sinistras, Euclides pulou como se impelido por força elétrica, lançou as mãos ao peito do Manuelzinho e arrastando o coitado pelo corredouro, até a porta da rua, arremessou-o fora.

Assustada com o barulho e gritaria de Euclides, siá Aninha vem correndo lá de dentro, reconhecendo o incomparável pajem de seus filhinhos, ferra um tendepá com o marido, que foi até muito tarde.

Foi uma noite mal dormida. Quando os surucuás principiaram a cantar, mal se esboçavam no oriente os primeiros olhares da manhã, Euclides encaminhou-se para o rio. Os operários, a postos, retiniam os martelos rebatendo arrebites da ponte em construção. Resfolegavam os foles dos ferreiros. Mas estava impassível pelo pejo que sucedeu ao grande susto, que lhe pregara o Manuelzinho.

  ***

Nos primeiros dias do ano de 1903, imperava na cidade a tristeza, a desolação e a morte. O surto de febre amarela pôs em debandada duas terças partes da população, os que não fugiram andavam encaramujados e soturnos. Uma das primeiras vítimas foi o Manuelzinho das Crianças.

Lembro-me que foi com grande pesar que eu vi subindo o morrinho, a caminho do cemitério, a carrocinha mortuária, que levava para a sepultura e para o esquecimento os despojos da estranha criatura,  a quem não coube deixar nenhuma saudade e que não mereceu flores e nem lágrimas: e no entanto tão expressivamente simbolizou um nobre amor, um amor, que direi quase maternal pelas crianças.”

31/1/1903

Crônica retirada do livro Fênix (O renascer de velhos textos) – Rodolpho José Del Guerra , página 188.





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