Euclides da Cunha

Eu não tenho vocação para a espada, a arma que eu sei manejar é a pena.

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02/08/2012

  Adelino Brandão

  (Centro de Estudos Euclides da Cunha)

  Jundiaí,SP

Há oitenta anos da publicação de Os Sertões, é inegável que os estudos sociais e as ciências humanas tomaram  no Brasil um rumo novo, acompanhando a marcha do progresso havido em todos os ramos das ciências. Não obstante, permanece de pé a observação de Afrânio Peixoto, feita há quase quarenta anos: ainda está por fazer-se um levantamento condigno das contribuições euclidianas à Sociologia, à Antropologia, à Etnografia brasileiras, como teórico e pesquisador de campo que foi.

Isso não quer dizer que não tenhamos registrado na bibliografia sobre Euclides e Os Sertões alguns trabalhos de valor, elaborados daquele ponto de vista, principalmente depois da publicação da Obra Completa do escritor fluminense, aparecida em 1966, na edição Aguilar, por ocasião das comemorações do centenário de nascimento de Euclides.

Nessa edição, marcada com os estudos de Gilberto Freyre, Olímpio de Souza Andrade, José Veríssimo da Costa Pereira, Nelson Werneck Sodré e outros, o pensamento científico do sociólogo de Canudos é examinado à luz das ciências sociais modernas e pelo prisma do conhecimento positivo. Bem antes, já tivéramos alguns trabalhos conhecidos, devidos a Aroldo Azevedo, Henrique Alves, Manuel Diegues Júnior, Dante Moreira Leite, Roquette-Pinto, Francisco Venâncio Filho, Herbert Parentes Fortes, José Calasans, Cruz Costa, Otávio Brandão, Moisés Gicovate,etc., cujas páginas ou artigos publicados na imprensa e revistas especializadas analisam aspectos antropológicos, sociológicos, geográficos, históricos, etnográficos e etnológicos, psicológicos-sociais, biológicos-sociais e ecológicos... da obra do imortal cantagalense, especialmente de Os Sertões.

Mas o que existe nesse campo nos parece muito pouco, se levarmos em conta que Euclides representa para nós, como já foi observado, o que Dante representa para a cultura italiana, Shakespeare para a inglesa, Cervantes para a hispânica, e Camões para Portugal. Como disse Tristão de Ataíde: ”Há obras tão grandes que não cabem dentro de um curso de letras ou história ou sociologia.”... A obra de Euclides está neste caso, o suficiente para justificar um curso específico junto às faculdades e universidades, onde as horas-aulas para o estudo dos capítulos  da obra euclidiana que merecem análise por seus aspectos  científicos não seriam em menor quantidade do que as destinadas à apreciação de Os Sertões ou À Margem da História, do ponto de vista exclusivamente estético-formal.

No entanto, não é, em regra, o que tem ocorrido: pouco, muito pouco, se focaliza o conteúdo científico das páginas euclidianas, sobre as quais passamos como gato em brasas, com a desculpa de que “o livro está superado”, do ponto de vista do pensamento científico do século 20. Mas não se explica nem se diz em quê e por quê – Euclides estaria superado como antropologista, etnógrafo, historiador ou sociólogo...

Com isso, perdemos uma excelente oportunidade de avaliar com pormenores a evolução do pensamento científico no Brasil, no período que vai da proclamação da República ao começo do século, período que teve em Euclides a sua celebração mais potente. Em 1966, por exemplo, por ocasião da exposição comemorativa do centenário do escritor, realizada no saguão da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, numa iniciativa feliz do intelectual e romancista Adonias Filho, dos 150 títulos ali expostos, não chegavam a 30 os trabalhos que se referiam à obra do estilista de Contrastes e Confrontos de ângulo exclusivamente científico. Em sua maior parte, os trabalhos se referiam a Euclides, o poeta, o romancista, o jornalista, o repórter, o engenheiro, o militar, etc.; ou então, expunham-se críticas sobre a linguagem, o estilo, o vocabulário, a filosofia estética do escritor. O resto se concentrava na biografia, nos dramas pessoais, nas tragédias domésticas do correspondente d’O Estado de S.Paulo... A Tragédia da Piedade... a Ponte de São José do Rio Pardo ...as lutas por editar-se...

E, no entanto, já dizia Afrânio Peixoto, em conferência pronunciada em 1943: “Euclides é o primeiro, em data, dos nossos sociólogos”... “o primeiro, o sugestionador, o pioneiro, o que abriu a picada pela mataria por onde os outros penetraram.” (1)

Como história e como história militar, como teve oportunidade de dizer o general Umberto Peregrino, a obra de Euclides acha-se bem caracterizada. Lá estão, n’Os Sertões, “copiosos e nítidos, todos os elementos que os especialistas costumam esgrimir no estudo das campanhas, para chegar à chamada “crítica militar”, que consideram tão importante, a ponto de confundi-la, frequentemente, com a própria história ...” (2).

Por sua vez, já assinalara Sílvio Romero que o primeiro livro de Euclides “era um sério estudo social de nosso povo, firmado, até certo ponto, na observação direta.”(3)

Como geógrafo, Euclides ficou bem caracterizado pelo método, descrição, observação, documentação e explicação do binômio Homem-Terra, dos fenômenos que analisou. José Veríssimo da Costa Pereira e Moisés Gicovate não têm dúvida: Euclides foi também ”um geógrafo nato”. (4)

Sem ter sido escrita para especialistas, a obra de Euclides “obedeceu, em seu traçado geral, as linhas metodológicas corretas”, do ponto de vista da Geografia Humana. Antecipando-se a Vidal de La Blache e seu conceito de gêneros de vida, ao estudar o homem do sertão, o nosso cientista social “portou-se como faria um geógrafo moderno, um Jean Brunhes, por exemplo”. (5)

E para aquilatar da importância de Os Sertões pelo ângulo da Antropologia Cultural (Etnologia), basta ver o que dele escreveu o professor Fernando Azevedo em suas respeitáveis obras, As Ciências no Brasil e A Cultura Brasileira. Dessa forma, o pensamento de Euclides, tanto quanto suas contribuições, à ciência, no Brasil, como sociólogo, geógrafo, antropologista, ou historiador, surgem na sua obra polifacetada, com a mesma riqueza com que se revela” como cronista, como pensador, como epistológrafo e até poeta bissexto”... (6)

Embora a síntese final obtida em Os Sertões resulte, como observa Franklin de Oliveira, “da adoção de recursos tipicamente literários”, não podemos dissociar nele o prosador e o cientista social. Esta é que nos parece a verdade, desde que o livro continua sendo “a mais alta interpretação do Brasil feita em termos de arte”. (7)

Noutras palavras, isto significa dizer que a par de uma vitória da literatura, o livro de Euclides se constitui também numa vitória do estudo, da erudição, do método, da pesquisa objetiva, da experiência concreta, tanto quanto da intuição e interpretação teórica correta do autor. Uma faceta da obra euclidiana ainda a exigir discussões.

Notas Bibliográficas

1-  Afrânio Peixoto – “O Outro Euclides: o que sobra de Os Sertões” (conferência), in Letras Brasileiras, n°6, outubro de 1943, p.3 - Editora “A Noite”; Poeira da Estrada, 1944, Cia. Edit. Nacional, S. Paulo, 3ª Ed., p.80.

2-  Umberto Peregrino - Euclides da Cunha e outros Estudos, 1968, Gráfica Edit. Record, Rio de Janeiro, p.38.

3-  Sílvio Romero – História da Literatura Brasileira, 1954, Edit. José Olympio, Rio de Janeiro, tomo 5°, p. 1957.

4-  Euclides da Cunha – Obra Completa: “O Espírito Geográfico na Obra de Euclides da Cunha”, 1966, Edit. José Aguilar, Rio de Janeiro, 2° v., p. 63.

5-  José Veríssimo da Costa Pereira, obra e Ed. cit. p.67.

6-  Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima) – “Uma Edição Marco”, in Folha de S.Paulo, S. Paulo, 13-11-1966.

7-  Franklin de Oliveira - “O Universo Verbal de “Os Sertões”, in Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, S. Paulo, 22-1-66.





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