Euclides da Cunha

Eu não tenho vocação para a espada, a arma que eu sei manejar é a pena.

Noticias


Voltar

21/06/2021

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA “EUCLIDES ALÉM DOS SERTÕES”, DO JORNALISTA FABIANO MAISONNNAVE COM O HISTORIADOR LUÍS CLÁUDIO VILLAFAÑE G. SANTOS, AUTOR DO LIVRO “EUCLIDES DA CUNHA: UMA BIOGRAFIA”

  Euclides da Cunha e o livro “Os sertões” (1902)são pesquisados e analisados por críticos literários e outros intelectuais há quase 119 anos, quando essa obra foi lançada, despertando discussões intermináveis sobre os mais diferentes aspectos do livro e de seu autor, principalmente no país e também no exterior. Obras intermináveis têm sido publicadas sobre ambos, o que levou o grande historiador José Calasans a afirmar em 1986 que “discutir Os sertões é coisa para séculos”. Para o crítico literário Agripino Grieco, por exemplo, “Euclides foi verdadeiro e original no país da mentira e do plágio”, enquanto que para outros, como Mário de Andrade, o livro causou males, escrevendo em 1930: “Estou convencido que o livro de Euclides fez um mal enorme pros brasileiros e dificultou vastamente o problema das secas. Fez da seca uma obra de arte, e nós adquirimos por causa dele, uma noção derivada, quase que de função puramente literária. A seca virou bonita e os nossos deveres, a própria consciência dos nossos deveres, ficaram bonitos também (e) quando a desgraça chega, tudo é eloquência, tudo é literatura, tudo é prolongamento do livro de Euclides da Cunha, homem que, embora magnífico, ninguém discutirá que foi literato da maior literária.” (TCDN, ps. 251/252)

  Opiniões opostas, como as citadas acima, são inesgotáveis há mais de cem anos e ainda estão longe de terminar, tamanha é a riqueza de temas e análises que suscitam em estudiosos das mais diferentes áreas de conhecimentos. Notícia recente, por exemplo, revelada pelos pesquisadores Felipe Rissato e Leopoldo M. Bernucci, anuncia para breve a descoberta e a publicação de cerca de 400 cartas inéditas de Euclides da Cunha, escritas quando de sua permanência na Amazônia durante o ano de 1905, o que com certeza trará enorme contribuição para compreender sua missão diplomática naquela vasta região.

  No dia 13 de junho último, no caderno Ilustrada Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo, foi anunciado o lançamento de uma nova biografia de Euclides da Cunha com o título “Euclides da Cunha: uma Biografia”, pelo diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, e publicada uma entrevista com o autor que, atualmente, ocupa o cargo de embaixador do Brasil na Nicarágua desde 2017. Ela vem juntar-se às biografias já existentes, como a de Silvio Rabello, Roberto Ventura (biografia publicada, mas incompleta pela morte precoce do autor), Frederik Amory, entre outras.

  Não teria cabimento avaliar essa nova obra sem tê-la lido integralmente e baseado apenas no artigo jornalístico, mas por algumas respostas do autor na entrevista há afirmações polêmicas que merecem ser apreciadas, como faremos a seguir, ressaltando que só após a leitura da biografia é que será possível avaliá-la melhor.

  Dentre as afirmações polêmicas de Villafañe sobre Euclides e Os sertões estão questões já debatidas por vários autores, e que são as seguintes:

1 - Villafañe afirma que a “terrível visão determinista e racista (de Euclides da Cunha, contra negros e índios), calcada em informações científicas erradas (“mesmo em relação aos padrões da ciência daquela época, ou mesmo da ciência de então que chegava ao Brasil”) e em trabalhos de terceiros (sem citar as fontes) que resvalam para o plágio”. Como Euclides da Cunha era leitor voraz e polígrafo, citamos abaixo uma lista de autores que ele citou no livro Os sertões e em suas cartas, e onde provavelmente encontrava os conceitos científicos e literários “errados” ou que podia “plagiar” ao elaborar seu livro famoso, segundo seu novo biógrafo:

Autores lidos por Euclides da Cunha mencionados por ele nas cartas e no livro Os sertões:

Biólogos: H. Spencer, Lombroso, Nina Rodrigues, Maudsley; Geógrafos: Hartt, Ratzel; Geólogos: Eschwege; Sociólogos: Durkheim, Auguste Comte, Gumplowicz, Edmund Burke; Naturalistas: Humboldt, Martius, Spix, Agassiz, Dr. Cruls, Saint-Hilaire, Darwin, Ihering, Emilio Goeldi; Pensadores racistas: Buffon, Gall, Combe, Renan, Gobineau, Gustave Le Bon, Gumplowicz, Varnhagen, Cairu, Paul Broca, Raimundo Nina Rodrigues; Pensadores Evolucionistas:  Lamarck, Darwin, T.H. Huxley, Spencer, Stuart Mill, Haeckel, Oscar Freyre; Historiadores:  Buckle, Carlyle, Renan, Taine, Michelet, João Ribeiro, Oliveira Lima, John Armitage, Varnhagen, Capistrano de Abreu; Filósofos: Pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, S. Agostinho, Bacon, Descartes, Espinosa, Hegel, Marx, Comte, Spencer, Thomas Huxley, Stuart Mill, Gumplowicz, Diderot, Kant, Ernesto Mach, Teixeira Mendes, Nietzsche, Schopenhauer; Engenheiros: Durand-Clayde, Bechmann, Arnold; Teatrólogos: Aristófanes, Molière, Ésquilo, Eurípedes, Shakespeare; Críticos literários e de arte: Taine, José Veríssimo, Cândido de Figueiredo, Araripe Júnior; Cientistas: Newton, Laplace, Gay-Lussac, Claude Bernard; Romancistas e poetas: Emile Zola, Guerra Junqueiro, Huysmans, Maupassant, Walter Scott, Byron, Shakespeare, Voltaire, Dante Alighieri, Ernest Renan, Camilo Castelo Branco, Alphonse Daudet (romancista francês, Xavier de Maistre, Victor Hugo, Dostoiévski, Ramalho Ortigão, Gregório de Mattos, Juvenal, Bocage, Coelho Neto, Cláudio Manuel da Costa, Alexandre Dumas, Quintino Bocaiúva, Machado de Assis, Artur Azevedo, Raimundo Correa, Afonso Arinos, Antônio Vieira, Mont`Alverne, Castro Alves, Valentim Magalhães, Joaquim Nabuco, Heinrich Heine, Henryck Sienckewicz, John Milton, Vicente de Carvalho, Alberto Rangel, Rui Barbosa, Antero de Quental, Ralph Emerson, Domingo Faustino Sarmiento, Proudhon.

Comentário: Quando Euclides da Cunha redigiu o livro “Os sertões”, sobre a campanha de Canudos, entre 1897 e 1902, conhecia e citava muitos autores e suas ideias, lidos diretamente por ele ou que haviam sido divulgados em artigos na imprensa brasileira e nas revistas dos Museus Etnográficos, Institutos Históricos e Geográficos, Faculdades de Direito e Faculdades de Medicina, mencionando-os com frequência, adaptando-os conforme suas interpretações, ou deles discordando quando julgava necessário. Esses autores e suas teses tiveram maior ou menor influência sobre Euclides da Cunha, sendo impossível determinar o grau que cada um deles exerceu sobre o seu pensamento.

  Naquela época, a maioria desses pensadores e suas ideias representavam a longa tradição racista europeia, e o seu correspondente tradicionalismo social e político, especialmente durante o século XIX, quando buscaram encontrar argumentos científicos (falsos) para fundamentar as suas reflexões preconceituosas. Do contexto europeu de onde surgiram, tais autores e suas ideias tornaram-se conhecidos nos Estados Unidos e na América Latina, onde existiam grupos sociais e políticos privilegiados brancos interessados em reforçar os preconceitos sociais e raciais que já possuíam contra negros, índios e mestiços, para continuar preservando seus interesses econômicos e privilégios sociais. A corrente racista e seus sustentáculos teóricos nas áreas filosófica, biológica, sociológica, psicológica, geográfica, etc., e as suas correspondentes tendências conservadoras, como o tradicionalismo, o positivismo, o darwinismo, o evolucionismo, a craniologia, o lombrosianismo e os conceitos de civilização e barbárie, tiveram grande repercussão no continente americano, especialmente nos EUA, Argentina, México e Brasil.

  Dos autores citados acima, e que constituem apenas uma pequena parcela dos que Euclides conhecia e estudara, podemos afirmar que ele recebeu algumas influências significativas que transpareceram na elaboração de seus artigos sobre Canudos e do livro Os sertões. O seu modelo histórico predileto, a Revolução Francesa, que ele estudara profundamente, forneceu-lhe o exemplo da revolta camponesa da Vendéia que ele comparou à revolta de Canudos e a passagem violenta da monarquia para a república; da teoria poligenista, que afirmava que os grupos humanos não tinham uma origem única (teoria monogenista), como afirmava a Bíblia, mas que surgira em diferentes lugares; de pensadores racistas aproveitou a ideia do determinismo racial, baseada em fatores biológicos, e da degeneração racial provocada pela miscigenação entre diferentes raças, que geraria seres atrasados, bárbaros e desequilibrados, muitos propensos naturalmente ao crime (conforme teoria do médico italiano Césare Lombroso), enquanto a pureza racial seria responsável por seres perfeitos, civilizados e equilibrados; de autores conservadores incorporou a ideia de elitismo social, de cientificismo, de determinismo biológico considerado responsável pelas desigualdades sociais; de Auguste Comte, de Renan e de alguns socialistas utópicos, assimilou a ideia de que a reforma da sociedade depende da educação, do saber, e não das armas, do poder militar; de Taine, aproveitou a ideia de que o historiador deve aplicar os conhecimentos das ciências físicas e biológicas às ciências humanas e à literatura; do darwinismo social absorveu a concepção de que a vida biológica e a luta pela sobrevivência determinam também a vida social e política, separando os homens em superiores, que são os mais úteis e mais aptos, daí serem os dominadores, e inferiores, os inúteis e menos aptos, daí serem os dominados; Euclides, provavelmente, reforçou suas ideias patriarcais típicas da sociedade brasileira com as ideias de Paul Broca e Gustave Le Bon sobre as mulheres, que as consideravam como seres inferiores física e intelectualmente em relação aos homens, fúteis, ilógicas, sem ideias, desprezíveis, e cujas funções na sociedade seriam gerar filhos, amar e serem passivas diante dos homens; de Domingo Faustino Sarmiento, Euclides teve como modelo o livro “Facundo: Civilização ou Barbárie” (1845), para comparar com Canudos, acompanhando as linhas gerais do livro do importante autor argentino: civilização X barbárie; litoral X interior; brancos X mestiços; ordem X desordem; progresso X atraso.

  Na última entrevista que concedeu, publicada na Revista Ilustrada, no mesmo dia de sua morte, 15 de agosto de 1909, Euclides declarara: - Continuo a ser o que sempre fui – um estudante. Com base na lista acima, que confirma sua declaração e que só enumera autores mencionados por ele, podemos constatar que ele era dotado intelectualmente de apreciável base científica, filosófica e histórica, mas tinha irresistível atração pela literatura, já que a quantidade de romancistas, contistas, poetas e teatrólogos formavam a maioria de suas leituras preferenciais. Era um homem atualizado em relação aos autores clássicos e aos principais autores nacionais e europeus e às obras de seu tempo, que foi a segunda metade do século XIX. O que parece difícil é querer filiar rigorosamente Euclides a determinadas escolas filosóficas, históricas, científicas ou literárias para compreender e explicar seu livro Os sertões, pois há vestígios de múltiplas influências, muitas vezes contraditórias entre si, mas que foram aproveitadas por ele para interpretar a guerra de Canudos com base no pressuposto de que ela se enraizava no passado, refletindo a formação do Brasil em seus múltiplos aspectos humanos, físicos e culturais.

  Villafañe dá a impressão de carregar na adjetivação ao atribuir a Euclides “terrível visão determinista e racista” contra negros e índios, mesmo porque o racismo é terrível em si mesmo ao degradar a condição humana, pela cor, no caso dos escravos, e pela cultura, no caso dos índios, e o determinismo é uma postulação de caráter conservador na medida em que se fundamenta no pressuposto da inércia da natureza humana e na impossibilidade de mudança social. 

  Reconhecemos que autores apontaram equívocos de Euclides em suas obras, como Luiz Costa Lima, no livro “Terra Ignota – A Construção de Os Sertões”, que o acusou de ter feito uma leitura confusa de Glumpowicz, “gênio anglo-saxão” para Euclides, mas que, na verdade, era polonês, atribuindo uma importância desmedida às raças que ele não dava, e na compreensão nem sempre clara de certas ideias científicas de outros autores, e Leopoldo M. Bernucci, no livro “A Imitação dos Sentidos”, em que apontou autores e obras nacionais que Euclides conhecia e aproveitou trechos que foram modificados e incorporados em Os sertões, como José de Alencar, Afonso Arinos, Siqueira de Menezes, Dantas Barreto, Cícero Dantas, Febrônio de Brito e Cunha Matos, entre outros. Bernucci ressalva, porém, sobre esse procedimento de Euclides: “Em linhas gerais, procura-se apagar as marcas alheias, borrar os rastros e extirpar as origens, mas paradoxalmente, busca-se também reutilizar uma linguagem destruída, e depois reelaborada, durante o processo. Daí podermos dizer com firmeza que, do ponto de vista literário desta operação e “luta”, Euclides não sairá nunca em frangalhos.” (A Imitação...p.55)

  Villafañe cita frase de Walnice Nogueira Galvão de que “Toda aquela ciência de “Os Sertões”, mal digerida, é de orelhada, de banco escolar”. Talvez o que abone as críticas feitas contra Euclides, sem absolvê-lo delas, seja o fato de que ele era polígrafo e não um especialista nos diferentes assuntos que abordou, daí talvez a precariedade de certos argumentos que sustentou nas argumentações que fez no livro. Por fim, Villafañe afirma que “o fator mais importante da permanência é a própria qualidade estética e literária do texto e sua força narrativa”, o que não é nenhuma novidade, já que isso é reconhecido há muito tempo por muitos críticos literários. Talvez Monteiro Lobato, um entusiasta de Euclides e do livro Os sertões, tenha razão ao afirmar qual foi o mérito maior de Euclides: “O grande triunfo de Euclides foi meter um pouco de ciência na literatura.”(23/10/1909, A Barca de Gleyre, Tomo 1, ps. 280).

  Quarenta e oito dias antes de sua morte, em 28 de junho de 1909, numa carta ao amigo Oliveira Lima, abatido, doente e pessimista, Euclides anotou uma frase sobre o Brasil em que diagnosticou alguns males daquela época e que ainda, de certa forma, perdura até hoje em nossa realidade: Ninguém lê, ninguém escreve, ninguém pensa.

2 - Villafañe afirma que pouco abordou sobre a visão de mundo dos militares que influenciou EC, reconhecendo que ela influiu muito sobre ele; que EC mitigou a influência do Positivismo da Escola Militar; que EC “chegou a ser um florianista convicto”.

Comentário: Villafañe afirma que Euclides “mitigou” a influência do Positivismo de Augusto Comte que lhe fora transmitido na Escola Militar e que ele “chegou a ser um florianista convicto”. Se Euclides mitigou, não deixou de sofrer influência do positivismo, que pode ser percebido na forma e no conteúdo do livro Os sertões, obra de 600 páginas escritas num tom imperativo, categórico, e que contêm apenas duas interrogações sobre questões que o autor não estava em condições de afirmar com certeza. No mais, a linguagem e o tom no decorrer do livro, talvez pelas informações e conhecimentos que dispunha naquele momento de redigi-lo, revela uma certeza em que transparece o cientificismo de sua formação militar eivada de positivismo comtista. Mas preparando-se para o concurso de professor de Lógica, para ocupar a cadeira no Colégio Nacional, Euclides criticou Augusto Comte numa carta a Oliveira Lima em 5 de maio de 1909: “Comte (que eu só conhecia e admirava através da matemática) revelou-se-me, no agitar ideias preconcebidas e prenoções, e princípios, um ideólogo, capaz de emparceirar-se ao mais vesânico dos escolásticos, sem distinção de nuances, em toda a linha agitada que vai de Roscelin a S. Tomás de Aquino.” (Correspondência, p.406). Euclides percebeu que Auguste Comte não era um filósofo que teria criado um sistema abrangente, mas apenas um intelectual que interpretou a história a partir de uma visão contrarrevolucionária e conservadora que acreditava no progresso material a partir do conhecimento científico e na ordem social absoluta para permiti-lo. Ou seja, Comte era um ideólogo prático e não um filósofo especulativo que resumia sua fórmula na célebre definição: “O amor como base, a ordem como meio, o progresso como fim.” Não seria por isso que os republicanos brasileiros, militares e oligarcas colocaram “Ordem e Progresso” como lema da bandeira nacional e em nome dele justificaram a repressão que causou a destruição e as massacres em Canudos?

  Villafañe afirmou que Euclides “chegou a ser um florianista convicto”, mas esperamos que em sua biografia ele explique melhor essa afirmação, já que Euclides encontrou-se com Floriano e recusou cargos que ele colocou à sua disposição; que Euclides protestou contra o fuzilamento de prisioneiros proposto por um deputado florianista, João Cordeiro, escrevendo e publicando duas cartas num jornal considerando a sugestão do parlamentar um “crime”, uma “selvatiqueza”, “um retrocesso”, uma “revivescência do barbarismo antigo”, e concluindo: “Não é invadindo prisões que se castigam criminosos”; que, por isso, foi punido e desterrado durante um ano em Campanha-MG, e que nesse desterro concluiu que deveria deixar sua carreira no exército, o que fez; que seu sogro, o general Solon Ribeiro, fora punido por Floriano porque assinara um manifesto com mais 12 generais exigindo dele nova eleição presidencial como determinava a Constituição de 1891. Ou seja, Euclides rompeu com Floriano e seu governo quando as arbitrariedades deste pareceram intoleráveis e não tirou proveito pessoal quando poderia fazê-lo, preferindo, por questões de princípios, não tirar vantagem da situação, como fizera em muitas outras oportunidades anteriores e faria posteriormente, a tal ponto que pôde escrever numa carta no final da vida: - “Não tenho grandes recursos; continuo – felizmente – a ser o mesmo heróico pobretão de sempre.” (05 de julho de 1909).

3 - Villafañe afirma que EC julgava que o Brasil “necessitaria, ainda que de forma transitória, de um governo forte, autoritário e austero, liderado por um militar ou uma figura ditatorial”.

Comentário: De fato, para realizar as mudanças necessárias com a transição da monarquia e a proclamação da República, em 1889, formou-se um Governo Provisório para implementá-las, as quais foram: a adoção da República Federativa, a separação da Igreja e o Estado, a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para elaborar a Constituição, a nomeação de interventores nos estados para substituir as autoridades monárquicas, as definições das atribuições dos estados e municípios, a eleição de um Presidente e vice-presidente de forma indireta, pela Assembleia Nacional Constituinte que se transformaria no Congresso nacional, etc. Após a renúncia de Deodoro e a posse de Floriano Peixoto, Euclides justificou-se ao amigo Porchat, dizendo-lhe que ficara ao lado dele por causa da Revolta da Armada contra Floriano porque havia o perigo da restauração da monarquia. Por isso, diz Euclides, “coloquei-me naturalmente, espontaneamente ao lado da entidade abstrata – governo – porque repilo a perspectiva desmoralizadora dos pronunciamentos e porque entendo que a salvação própria sendo um direito para os indivíduos é um dever para os governos. Além disto a nossa pobre Pátria, tão exausta já –não pode suportar reações armadas, não pode mais emprestar sangue para movimentos políticos... que sejam afinal movimentos de tropas” (Correspondência, p.50). Fora essa oportunidade, Euclides nunca pleiteou um regime de força como ideal político para o Brasil, como fariam mais tarde os tenentes de 1922, 1924 e 1930, e os generais de 1937 e de 1964.

4 - Villafañe afirma ser necessário “relembrar e rediscutir as condições que levaram a sociedade brasileira de então a, de maneira geral, apoiar o massacre de milhares de pessoas inocentes com base em versões absolutamente fantasiosas e evidentes distorções da realidade”, sendo que “o próprio Euclides também foi vítima e importante propagador daquela percepção absurda da realidade”.

Comentário: A imprensa radical do Rio de Janeiro denunciou a conspiração monarquista, alardeou o perigo da restauração a partir de Canudos, inventou mentiras absurdas, alimentou boatos, um grande número de fake news, na linguagem de hoje. Nas grandes cidades brasileiras, os jornais divulgavam as qualificações mais disparatadas sobre os canudenses, apelando para manchetes e expressões sensacionalistas, muitas delas de cunho político absurdo ou carregadas de psicologia simplista e barata que excitavam a opinião pública da época. Pelo baixo nível cultural da maioria da população, pode-se compreender o efeito causado em suas mentes e ações. É evidente que isso deve ser entendido dentro do contexto e dos interesses em jogo, mas hoje, distanciados daquele momento, percebemos a proporção do mal que a imprensa ajudou a forjar contra o país com esse alarmismo gratuito contra Canudos.

  Walnice Nogueira Galvão assinala, no seu livro “No Calor da Hora”, em que reuniu os principais jornais da época, e em outras obras que publicou, que “a Guerra de Canudos invade o editorial, a crônica, a reportagem, o anúncio e até o humorismo. Como forte veículo de manipulação, antes da era da comunicação eletrônica, o jornal, a serviço de correntes políticas a quem interessava criar o pânico e concentrar as opiniões em torno de um só inimigo, prestou serviços inestimáveis. Já que não era caso de invasão, não se podia contar com um inimigo externo; tinha-se aqui, bem à mão, e tão marginalizado que nem poderia protestar contra o papel que lhe atribuíam, um inimigo interno. A função do jornal foi servir como porta-voz das referidas correntes, lançando um brado de alerta e de convocação do corpo nacional ameaçado pela subversão interna (…) no caso do Brasil, foi de um pioneirismo extraordinário. E, se esse pioneirismo é mais para envergonhar que para honrar, todavia nesse momento a eficácia do veículo foi enorme.” (in “Gatos de outro saco”, páginas 71 e 72)

  A guerra contra Canudos era entendida e explicada de acordo com as premissas positivistas, evolucionistas, deterministas e lombrosianas então em voga na intelectualidade nacional e reproduzidas nos textos jornalísticos. Os principais jornais do país passaram a denunciar Canudos como o “centro de convergência da ação restauradora”, o “poderosíssimo reduto central do tresloucado e caduco monarquismo”, o “antro dos famigerados”, o “covil dos miseráveis inimigos da pátria”, o “antro do banditismo”, a “cidade maldita”, onde “o banditismo, a ignorância e o fanatismo estúpido e perverso acastelaram-se para a eterna vergonha de nossa pátria”. Os jornais classificavam Antônio Conselheiro como “célebre bandido”, e os canudenses como “bandidos”, “bestas-feras”, “monarquistas encobertos”, “malvados inimigos”, “desgregados da sociedade”, “inimigos da pátria”, “celerados”, “hordas selvagens”, “inimigos da república”, etc. Os soldados do governo recebiam tratamento diferente, sendo considerados como “heróicos defensores da pátria”, “bravos defensores da República”, “intrépidos cruzados da República”, “valentes soldados”, “obreiros da boa causa da pátria”, etc. (expressões extraídas de “No calor da hora”, Walnice N. Galvão, Editora Ática, S. Paulo, 2ª edição, 1977). Canudos era considerado como “centro de convergência da ação restauradora”, “poderosíssimo reduto central do tresloucado e caduco monarquismo”, “antro de famigerados””, “covil dos miseráveis inimigos da pátria”, “cidade maldita”. “A Gazeta de Notícias” alardeava: “Não há quem a esta hora, não compreenda que o monarquismo revolucionário quer destruir com a República a Unidade do Brasil”; “O País”: “A tragédia de 3 de março em que, juntamente com Moreira César perderam a vida o ilustre coronel Tamarindo e tantos outros oficiais briosíssimos do nosso Exército, foi a confirmação de quanto o Partido Monarquista, à sombra da tolerância do poder público e, graças até aos seus involuntários alentos, tem crescido em audácia e força”; “O Estado de São Paulo”: “trata-se da restauração; conspira-se; forma-se o Exército imperialista. O mal é grande; que o remédio corra parelhas com o mal. A monarquia arma-se? Que o presidente chame às armas os republicanos” (idem, Walnice N. Galvão); “O movimento insurrecional do sertão da Bahia é monarquista. Não é preciso indagar se sempre o foi, porque, se o não era, nós republicanos, nós mesmos, que o tomamos como inimigo, lhe demos esse caráter. Para monarquistas e republicanos o movimento dos fanáticos de Antônio Conselheiro é hoje restaurador – para eles, para se aproveitarem da agitação que domina o interior do Estado da Bahia; para nós, para a repressão, que temos de fazer dessa agitação. Fosse ou não monarquista em seu nascedouro, o certo é que hoje o é, e que, como tal tem que ser tomado e, como tal tem que ser combatido.” (“O Estado de São Paulo”, março de 1897, citado em “Os subversivos da República”, de Maria de Lourdes M. Janotti, ps. 144 e 145

  Dessa forma, os jornais alimentaram a hipótese de que Antônio Conselheiro e seus seguidores eram controlados por grupos que queriam restaurar a monarquia no país. Essa hipótese foi criada pela imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, já que quase nenhum fazendeiro ou autoridade da Bahia acreditava ou manifestava tal temor. Em todo caso, o propalado perigo de “restauração” monárquica foi a justificativa para fazer-se a guerra contra Canudos. Esse fantasma, na verdade, ajudou o combalido regime republicano a unir suas forças e a consolidar-se definitivamente no país. Num trecho do jornal “O Estado de São Paulo” há a confissão maquiavélica, sem meias palavras, de que a propalada “restauração monárquica” atribuída aos canudenses não passou de um mito inventado pelos republicanos para justificar a repressão contra Antônio Conselheiro e seus seguidores. Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros assinala que, “chafurdando na Ciência da Política, governantes, legisladores, autoridades militares e articulistas de importantes jornais manipularam fatos, inventaram alianças entre canudenses e a destronada monarquia, fabricaram navios carregados de armas deslocando-se da Europa para o sertão, conseguindo enfim modelar o pensamento aterrorizado, defensivo e vingativo da época. Desembocando o clima de tensão numa histeria de pânico das populações urbanas, instaura-se o vandalismo na capital da República, com multidões empastelando jornais e destruindo residências de monarquistas nas ruas mais sofisticadas por onde desfilavam os ‘segmentos mais civilizados’ do país” (in ``Canudos na perspectiva científica``, site www.portfolium.com.br). Euclides acreditou também nessas versões, escreveu sobre elas, e só compreendeu sua falsidade quando esteve no sertão presenciando a guerra de Canudos.

5 - Villafañe afirma que acreditar que EC, chegando ao interior da Bahia, na região da guerra, teria “reformulado sua posição é uma mistificação”, pois ele apoiou a repressão militar contra Canudos até o fim.

Comentário: O processo dialético de gestação, elaboração e publicação do livro Os sertões por Euclides da Cunha levou cerca de cinco anos, de 1897 a 1902. Sua visão inicial da guerra, a partir do Rio de Janeiro, era de que a conflito sertanejo significava uma tentativa de restauração monárquica, mas tal perspectiva foi cedendo diante de sua permanência em Salvador, da travessia no sertão baiano e da presença em Canudos, quando fez observações diretas que registrou em suas reportagens jornalísticas e reunidas no livro “Canudos - Diário de Uma Expedição”. Euclides fez autocrítica de suas ideias anteriores, repudiando grande parte do que escrevera e pensara nos dois artigos “A Nossa Vendeia” I e II. Euclides reformulou muitas ideias de acordo com as condições objetivas com que se defrontou, superando mitos e versões que ele próprio endossara de outros autores ou ele mesmo elaborara equivocadamente antes de presenciar o conflito.

  As reportagens que Euclides escreveu foram reunidas posteriormente no livro “Canudos (Diário de uma expedição)”.Percebe-se nesses escritos que, na medida em que foi penetrando no sertão e se aproximando do teatro de guerra, suas opiniões anteriores foram ficando pelo caminho e outras foram sendo elaboradas em sua mente e anotadas. Euclides trazia juízos negativos que vinham sendo divulgados contra Antônio Conselheiro há mais de duas décadas, mas o contato com a realidade do sertão, com a guerra e com informações mais confiáveis abalaram significativamente seus juízos, embora só nas cartas pessoais tenha reconsiderado a imagem do líder sertanejo, passando a elogiá-lo.

Começou a aprofundar sua análise, no entanto, ao perceber que o conflito sertanejo tinha raízes mais profundas, levantando teses e propostas que depois serão desenvolvidas em “Os sertões”:

(...)este incidente de Canudos é apenas sintomático: erramos se o considerarmos apenas resumido numa aldeia perdida nos sertões.; Sou levado a acreditar que tem raízes fundas esta conflagração lamentável dos sertões.

  Euclides fez uma autocrítica assinalando seus equívocos antes de observar certos acontecimentos, desviando o foco anterior de análise das condições naturais e suas influências sobre os jagunços para outros fatores ainda mal compreendidos por ele a fim de entender as razões de sua resistência suicida:

Ao chegar aqui e assaltado logo por impressões novas e variadas, perturbadoras de um juízo seguro, acredito às vezes, que avaliei imperfeitamente a situação e dominado talvez pela opinião geral entre os que voltavam de Canudos disse também com eles: - Está quase terminada a luta e não fará mais vítimas (…) somos irresistivelmente levados a considerar a campanha, em vez de próxima ao seu termo, sob a sua feição primitiva, incompreensível, misteriosa.

  Euclides começa a entender melhor Antônio Conselheiro, Canudos e os jagunços quando recolheu informações de Agostinho, um jagunço adolescente de Canudos, trazido para Salvador como prisioneiro pelo coronel Carlos Teles:

Quanto a Antônio Conselheiro, ao invés da sordidez imaginada, dá o exemplo de notável asseio nas vestes e no corpo. Ao invés de um rosto esquálido agravado no aspecto repugnante por uma cabeleira mal tratada onde fervilham vermes – emolduram-lhe a face magra e macerada longa barba branca, longos cabelos caídos sobre os ombros, corredios e cuidados. Raro abandona o santuário; não faz visitas. Todos, inclusive o João Abade, de aspecto minaz, dirigem-se a ele, descobertos, olhos fixos no chão. Nas raras excursões que faz, envolto na túnica azul inseparável, cobre-se de amplo chapéu de abas largas e caídas, de fitas pretas. O seu domínio é de fato absoluto; não penetra em Canudos um só viajante sem que ele o saiba e permita. As ordens dadas, cumpridas religiosamente. Algumas são crudelíssimas e patenteiam a feição bárbara do maníaco construtor de cemitérios e igrejas.; É absolutamente interdito o uso de aguardente, a caninha. (19/08, p.54); a criação mais numerosa é a de bodes (p.55); Não os conhece (milagres do Conselheiro), não os viu nunca, nunca ouviu dizer que ele fazia milagres (p.55; Mas o que promete afinal ele aos que morrem? - Salvar a alma. (p.55)

  Dessa forma, Euclides vai questionando seus mitos e preconceitos e construindo uma imagem mais positiva, mais fundamentada, sobre Antônio Conselheiro, Canudos e os jagunços.

  No último dia em que esteve em Canudos, ainda impressionado com o valor dos canudenses, Euclides preocupava-se não mais com o aspecto militar da campanha, já praticamente decidida, mas com o futuro político deles. Incorporá-los à vida política republicana era a sua sugestão naquele momento derradeiro. Sugeria o envio de professores como meio para que superassem a "barbárie" em que viviam e ingressassem na "civilização".

  Villafañe afirma que Euclides apoiou a repressão militar contra Canudos até o fim, mas o que ele esperava que Euclides fizesse, tendo sido militar fiel à República? Se Villafañe tenta associar Euclides à repressão para diminuir a indignação que ele manifestou posteriormente em seu livro, o que outros autores não fizeram, preferindo-se calar, deveria ampliar sua percepção de que nas semanas em que Euclides esteve na Bahia e no campo de batalha desmistificaram sua mente dos mitos e abriram seus olhos para a realidade, o que ele traduziria em quadros verbais épicos, dantescos e de denúncia e indignação sem precedentes no seu livro. Mais do que isso, pois Euclides da Cunha generosamente sugeriu que os sobreviventes se tornassem cidadãos republicanos e que os governantes deveriam ter mandado mestres-escolas e não soldados e armas para o sertão. Que lição para os nossos dias atuais!

6 - Villafañe afirma queao contrário do que geralmente se acredita, “Os Sertões” foi menos uma obra que tenha servido para denunciar o massacre dos sertanejos e, paradoxalmente, mais um livro que serviu para aplacar o mal-estar geral que passou a existir quando se consolidou a ideia do absurdo da mortandade. O livro chega depois do estabelecimento desse mal estar e, portanto, não o provoca. Ao contrário, iria contribuir para sua superação, pelas razões que aponto no livro.”

Comentário:Nenhuma época pode transmitir sua sensibilidade às outras”, anotou o poeta Fernando Pessoa (1888-1935) em suas “Páginas de Estética”. Parece que Villafañe colocou o carro na frente dos bois, porque se a ideia do absurdo da mortandade da guerra de Canudos se consolidou e, portanto, caiu no esquecimento e na indiferença, foi exatamente a publicação de Os sertões, cinco anos depois do final da guerra, em 1902, que com a distância e a passagem do tempo e com o vácuo deixado pela inexistência de obras que mantivessem vivas na memória os episódios do conflito, reavivou o mal-estar suscitado por ele, tirando-o da amnésia em que caía e denunciando-o com veemência para as novas gerações. Se fosse aceitável o que Villafañe afirma, teríamos capacidade para nos transplantar de uma época para outra e senti-la como era, o que é impossível e arbitrário. O mesmo equívoco ele comete quando se refere aos conceitos científicos utilizados por Euclides ao escrever Os sertões como “errados”, desde que vistos a partir do presente, quase 120 anos depois, mas não quando os consideramos dentro do contexto daquela época e da mentalidade então predominante. Respeitamos a afirmação de Villafañe de que no seu livro as razões de sua tese estão explicadas.

7 - Villafañe anuncia um relato “em um grau totalmente inédito de detalhe e com informações até agora desconhecidas,” e o período que trabalhou no Itamaraty sob as ordens do barão do Rio Branco, desenhando mapas até as nascentes do rio Purus.

Comentário: Há muitos relatos e documentários sobre a viagem de Euclides pelo rio Purus e no Itamaraty, reveladas em suas cartas publicadas várias vezes, mas que podem sofrer acréscimos, como a recente notícia do encontro e da breve publicação de 400 cartas pelos pesquisadores Felipe Rissato e Leopoldo Bernucci.  Torcemos que Villafañe nos revele novas informações sobre a presença euclidiana na Amazônia como Chefe da Comissão Brasileira e como cartógrafo no Itamaraty que possam iluminar novos aspectos do desempenho de Euclides nas missões que foi incumbido e desempenhou com competência.

8 - Villafañe afirma que Saninha declarou que Euclides era “apaixonado pela sua reputação”, que ele já sabia do seu caso extraconjugal havia muito tempo; afirma também que Euclides “sabia da traição desde, pelo menos, julho de 1906, quando nasceu o primeiro filho dela com Dilermando”.

Comentário: Euclides voltou da Amazônia em 5 janeiro de 1906, encontrando Saninha grávida de quase 3 meses, percebendo o caso dela com Dilermando. Como a criança nasceu em 11 julho (morrendo uma semana depois de fragilidade congênita), seis meses após a volta de Euclides, como Villafañe pode afirmar que Euclides só soube da traição dela quando a criança nasceu em julho? Não percebeu a gravidez da esposa antes?

Euclides era machista, patriarcal, neurastênico, obsessivo, preocupado, famoso como escritor, acadêmico. Estávamos no início do século XX e ele zelava “pela sua reputação” pública, embora soubesse do caso de sua mulher que teve outro filho de Dilermando, registrado como Luís, “uma espiga de milho num cafezal”, nas palavras do próprio Euclides, para identificá-lo com Dilermando de Assis, já que seus 3 filhos (Solon, Quidinho e Manuel Afonso) com Saninha eram morenos. Como sempre, Villafañe escolhe ou coloca adjetivos carregados quando se trata de Euclides, como no caso dele ser “apaixonado pela sua reputação” ou considera “terrível o seu racismo”.

9 - Villafañe afirma que “é de registrar que Euclides não estava alucinado pela descoberta inesperada da traição quando saiu de casa para assassinar Dilermando e, provavelmente, depois a própria Ana. Tampouco existiu um duelo, no sentido estrito muitas vezes como é dito (...) Dilermando cometeu um homicídio, e não um assassinato, e claramente em legítima defesa.”

Comentário: Um conjunto de circunstâncias se conjugaram para influir Euclides no seu gesto fatal. Sua saúde estava tão abalada, não só pela tuberculose, mas também pela malária que contraíra em 1905 na Amazônia, a tal ponto que em cartas aos amigos dessa época desabafara: - “Estou fúnebre”; - “Já dei o que tinha de dar”. A situação política em 1909 começava a complicar-se para Euclides na medida em que sua simpatia e ligação com políticos favoráveis ao candidato civilista Ruy Barbosa e contrários à candidatura do marechal Hermes da Fonseca a presidente da República, que negociava (e conseguiu) o apoio do barão do Rio Branco, colocava em risco sua precária situação profissional e permanência como cartógrafo no Ministério das Relações Exteriores apadrinhado pelo barão. Caso o marechal Hermes fosse eleito, como acabou acontecendo, Euclides possivelmente sofreria retaliações pelas críticas e denúncias que fez aos militares no livro Os sertões, mas que sua morte acabou não consumando. No plano familiar, Euclides tinha problemas com os filhos adolescentes Solon e Quidinho, ambos expulsos das escolas onde estudavam e que só lhe traziam contrariedades em casa. Sua situação conjugal atingira o ápice da crise, quando a esposa Saninha resolveu abandoná-lo para viver com o amante Dilermando de Assis, levando seus filhos, no bairro da Piedade, o que precipitou a atitude de Euclides. Como afirma Villafañe, “Euclides não estava alucinado pela descoberta inesperada da traição”, oque já sabia desde que voltara da Amazônia, e tentara abafar, no início de 1906, mas estava desesperado com a situação política adversa do país, a possível perda da proteção do barão no Itamaraty, sua precária saúde, a decepção com os filhos e por último o abandono da mulher. De fato, não houve duelo, mas Euclides foi mal sucedido ao invadir a casa de Dilermando de Assis e de seu irmão Dinorah e, apesar de baleá-los, foi morto por Dilermando, que foi julgado duas vezes e absolvido por ter agido em legítima defesa.

10 – Villafañe afirma que Os Sertões, publicado em 1902, cinco anos após o fim da Guerra de Canudos, “ofereceu à opinião pública um crime sem criminosos”

Comentário: Não existem crimes sem criminosos, existem crimes não esclarecidos ou não julgados. No livro Os sertões, que é uma peça acusatória, os criminosos foram muitos, julgados e condenados pela História e por Euclides, e não pelos erros e barbaridades que cometeram: governantes, militares, latifundiários, sacerdotes, autoridades, todos irmanados na luta contra Canudos e os sertanejos. Que dizer do presidente Prudente de Moraes que exigiu que de Canudos “não ficasse pedra sobre pedra”, o que foi levado ao pé da letra pelos militares, que o destruíram a tiros de canhão, usaram querosene para queimar suas casas, facas para degolar os prisioneiros e distribuíram entre si as mulheres e crianças sobreviventes? E isso entre brasileiros...

  Trinta anos antes, os brasileiros participaram da guerra contra o Paraguai, onde cenas cruéis aconteceram, mas tratava-se de um país inimigo, e não se pode romantizar nenhuma guerra. Logo após o início da República, houve guerras civis entre o Exército e a Marinha, durante o governo de Deodoro e de Floriano, e a Revolução Federalista, no sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná), com muitas baixas. Contra Canudos foram mandados muitos militares que lutaram nesses conflitos, acrescidos de muitos soldados de outros estados brasileiros, e o mesmo se repetiu, com a mesma crueldade, ou talvez mais...

  Se Villafañe acusa Euclides de ter publicado um livro denunciando “um crime sem criminosos”, ele não estaria, talvez, inconscientemente, inocentando aqueles que praticaram o crime e que desfilam pelo livro euclidiano com nomes e postos mencionados, já que Euclides denunciou no livro que “aquilo não foi uma campanha, foi uma charqueada”, “foi um crime contra a nacionalidade”? Euclides elogiou a resistência e a coragem dos canudenses em lutar até o último homem e não poupou os militares pelos excessos cometidos.

  Ampliando a afirmação de Villafañe, perguntamos: será que foi um “crime sem criminosos” a decisão de lançar duas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945? O holocausto nazista contra os judeus aconteceu por acaso? Quem tem responsabilidade pela morte de 500.000 brasileiros ou é só culpa do vírus da Covid? O massacre de 7.000 jovens e crianças em Srebrenica, na Bósnia, nos anos 90, foi acidental? Os palestinos da faixa de Gaza são bombardeados e mortos por quem?

Quem deu as ordens, quem cumpriu, quem acionou as armas ou quem se omitiu em todas essas barbaridades?

11 - Se Villafañe afirma que outros autores, jornalistas e intelectuais haviam denunciado a guerra antes da publicação de Os sertões, como pode afirmar que teria desmontado o mito de que Euclides liderou as denúncias das atrocidades do Exército cometidas contra a comunidade de Belo Monte (Canudos)?

Comentário: Terminada a guerra de Canudos,no início de outubro de 1897, e até mesmo antes, jornalistas, políticos e militares começaram a registrar seus depoimentos em livros, emitindo suas opiniões e juízos sobre Antônio Conselheiro, os sertanejos, Canudos, os militares e a guerra. Alguns deles estiveram em Canudos durante o conflito, participando das operações bélicas, outros chegaram depois, nas últimas semanas, como Euclides da Cunha, até havendo casos de outros que nem estiveram presentes, como Lélis Piedade, Afonso Arinos e Raimundo Nina Rodrigues...

  Euclides da Cunha foi do Rio de Janeiro para Salvador, onde permaneceu, depois seguindo para o sertão baiano de trem, até Queimadas, dali partindo e permanecendo vários dias em Monte Santo, chegando a Canudos no dia 16 de setembro, ali permanecendo pouco mais de duas semanas, até 3 de outubro de 1897, dois dias antes do término da guerra, quando voltou doente para Salvador.

  Neste comentário, apresentamos resumidamente as opiniões de nove autores de livros sobre a guerra sertaneja e os seus diferentes aspectos, sendo os nove primeiros anteriores à publicação do livro Os sertões, de Euclides da Cunha, em dezembro de 1902. Desconhecemos a existência de um mito que atribuía a Euclides da Cunha a prioridade de denúncias das atrocidades cometidas contra os canudenses, como afirmou Villafañe, quando muitas dessas obras foram republicadas posteriormente, a não ser por pessoas que desconheciam a bibliografia existente sobre o assunto ou não se interessavam por ele. Tal mito de prioridade de Euclides talvez tenha sido atribuído a Euclides da Cunha apenas para criar um ponto de referência falso, artificial, para encobrir o desconhecimento de outros autores que o precederam e que denunciaram as atrocidades em obras de menor repercussão.

  Em seguida, vamos enumerar opiniões dos autores dos primeiros livros sobre a repressão na guerra de Canudos, incluindo as opiniões de Euclides consignadas no livro Os sertões. Não incluiremos aqui as opiniões dos dez autores sobre Antônio Conselheiro, os canudenses e os militares, limitando-nos à repressão praticada contra os prisioneiros pelos vencedores, para discordar da afirmação de que Villafañe teria desmontado o mito de que Euclides liderou as denúncias das atrocidades do Exército cometidas contra a comunidade de Belo Monte (Canudos)”. As atrocidades contra Canudos foram denunciadas ou omitidas pelos autores que (quase todos) presenciaram e escreveram sobre a guerra. Dos dez autores, sete fizeram críticas à repressão contra os canudenses e três preferiram se omitir por diferentes razões. Euclides da Cunha publicou suas críticas sobre a repressão no livro Os sertões, em 1902, cinco anos após o final do conflito, e considerá-lo o “primeiro” a denunciar a repressão carece de fundamentos. E se Villafañe se considera o “desmontador” desse mito atribuído a Euclides, ele está cometendo um equívoco duplo, ao criar um novo mito para destruir outro mito, ambos insustentáveis...

  As opiniões desses autores citados sobre os diferentes aspectos devem confrontadas com as que Euclides da Cunha consignou em seu livro para demonstraras influências sofridas ou a originalidade de seu pensamento em relação a elas.

  Ainda sob o impacto do fracasso da 3ª expedição, comandada pelo coronel Moreira César contra Canudos, o maranhense Raimundo Nina Rodrigues, etnógrafo, criminalista, patologista e sociólogo escreveu e publicou o artigo “A loucura epidêmica de Canudos”, em 1º de novembro de 1897. Em maio-junho de 1898, completou o artigo anterior com outro, intitulado “A loucura das multidões”. Ambos foram incluídos com outros estudos no livro “As coletividades anormais”, que foi o primeiro livro publicado sobre Canudos e Antônio Conselheiro. Nina Rodrigues nada escreveu sobre a repressão, mas fez uma revelação surpreendente, já que usara os piores conceitos psicológicos para avaliar Antônio Conselheiro em seus artigos:

“Na hora em que acabávamos nosso artigo precedente sobre essa epidemia, uma notícia telegráfica anunciava-nos a tomada de Canudos. Antônio Conselheiro havia morrido alguns dias antes, tendo sido inumado seu cadáver no santuário de uma igreja em construção (...) as autoridades exumaram seu cadáver para estabelecerem sua identidade e procederem a autópsia. A cabeça foi separada, sendo-me o crânio oferecido pelo médico chefe da expedição, o major Dr. Miranda Curió. Encontra-se atualmente no laboratório de medicina legal da Bahia. O Dr. Sá Oliveira, preparador de medicina legal, e eu, procedemos ao exame craniométrico desta peça. O crânio de Antônio Conselheiro não apresentava nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescência: é um crânio de mestiço onde se associam caracteres antropológicos de raças diferentes. É, pois, um crânio normal.” (págs. 88, 89 e 90)

  Louve-se a honestidade científica de Nina Rodrigues em reconhecer a normalidade do crânio de Antônio Conselheiro, já que seus conceitos psicológicos haviam sido extremamente negativos quando analisaram a sua personalidade. Era uma contradição evidente em sua postura, que tornava artificial toda a sua construção conceitual caracterizando Canudos como uma coletividade anormal.

  O segundo livro sobre o assunto foi o romance “Os Jagunços”, em 1898, do escritor mineiro Afonso Arinos, monarquista, que reuniu nele os folhetins que publicara no jornal “Comércio de São Paulo” durante a guerra.Para evitar possíveis retaliações dos republicanos, Arinos utilizou o pseudônimo “Olívio de Barros” e tirou apenas 200 exemplares da obra na primeira edição.  Arinos vivia em São Paulo e não esteve em Canudos.Afonso Arinos não descreveu em seu romance a cruel repressão desencadeada contra os jagunços e a sua “cidade santa”, mantendo o foco nos canudenses, pelas mesmas razões que não comentou a atuação dos militares, possivelmente pelo receio de sofrer retaliação por ser um conhecido monarquista.

  O repórter Manoel Benício Fontenelle, capitão honorário do Exército, reuniu seus artigos publicados no “Jornal do Comércio”, publicando em 1899 a crônica histórica e de costumes sertanejos” intitulada “O Rei dos Jagunços”, relatando a Campanha de Canudos de forma romanceada, “guardada a maior fidelidade histórica” (p. 6). Sobre a repressão e a degola de canudenses, Manoel Benício manifestou-se sem meias palavras: “O futuro há de dizer se a um governo humano assiste o poder de ser desumano com os seus governados antes de verificar maduramente qual o crime porque deixa-os ser punidos com o degolamento em massa” (p.323).

  O acadêmico de Medicina e diretor do Hospital de Variolosos de Canudos na 4a. expedição militar, Alvim Martins Horcades, publicou uma Descrição de uma viagem a Canudos”,em 1899.Alvim Horcades, foi veemente, denunciando indignado:

“Eu fui dos primeiros a apreciar, por entre as ruínas, tudo quanto havia. Horror! e mais horror! o cúmulo do horror!” (p.91); “Em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros” (p.103); “Belo exemplo de civismo e progredimento social! Levar-se homens de braços atados para trás como criminosos de lesa-majestade, indefesos, e perto mesmo de seus companheiros, para maior escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora a de uma ave, e cortar-lhe com o assassino ferro o pescoço deixando cair a cabeça sobre o solo - é o cúmulo do banditismo praticado a sangue frio como se fora uma ação nobilitante! Assassinar-se uma mulher, pelo simples fato de ser o seu companheiro conivente com o que se dava - é o auge da miséria! Arrancar-se a vida a criancinhas que ainda não haviam sentido o mais leve bafejo da ação corruptora do humanismo, cérebros inconscientes em que não haviam vibrado ainda sentimentos maus e que mais tarde concorreriam para solidificar a muralha pujante que sustenta as crianças republicanas - é o maior dos barbarismos e dos crimes monstruosos que o homem pode praticar! E além de tudo, estes prisioneiros estavam isentos de quaisquer castigos pelo juiz o mais probo e severo - a ciência, porquanto a psicologia diz que o fanático é irresponsável, é inconsciente; e ainda as leis de guerra do nosso país, como de todos, suponho que garantem a vida do prisioneiro. Mas entendeu-se que ali a lei era a força e o juiz o punhal. Que horrível decepção para nós!” (ps.104 e 105); (…) mandar extinguir, constantes e resolutos, qualidades talvez as mais essenciais para o homem da guerra, que deram uma excelente lição aos homens governantes e governados, é bárbaro, é desumano! (p.106);” De que nos serviu ela (a vitória)? Ela não foi mais do que um pacto vergonhoso, realizado à sombra do auriverde pavilhão e escudado pela efígie da República …” (p.109); (…) tratou-se de pôr em prática o plano traçado pelo general-em-chefe: - Não deixar ficar em pé nem um só pau que indicasse ter havido ali uma choça sequer” (p.124).

  Dias após o fim da guerra de Canudos, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro incumbiu o político e escritor baiano Aristides Augusto Milton de escrever um livro que intitulou A Campanha de Canudos”, publicado em 1900. Sobre a repressão, Aristides Milton fez verdadeiros contorcionismos verbais para denunciar as barbaridades cometidas pelos militares até concluir que,

“O compatriota não pode ser confundido com o verdadeiro inimigo, jamais! (…) Escusava aquela grande mortandade, com o que o país nada lucrou, mas antes perdeu na amenidade de seus costumes, nos créditos de seu progresso, na importância de sua civilização. Não se teriam, com certeza, testemunhado as cenas consternadoras que ali se desenrolaram. Esse montão de cadáveres carbonizados, essa quantidade de mulheres que morreram trucidadas, essa porção de crianças, que foram imoladas em ódio a seus pais; todo esse conjunto de crueldades, praticadas por brasileiros contra brasileiros, destoa dos sentimentos cristãos, que foram sempre o apanágio da nossa raça. Mas, o extermínio absoluto do contendor suplantado tinha de ser a conclusão dessa luta lamentável (…) era um crime o excesso de zelo, que se manifestava em perseguir ou eliminar o compatriota vencido.” (p.131, 132,133)

  O acadêmico de Medicina da Bahia e poeta, Francisco Cavalcanti Mangabeira, que seguiu como voluntário na quarta expedição contra Canudos, publicou o livro “Tragédia Épica – Campanha de Canudos”, formada por vinte cantos poéticos, em 1900.

  Francisco Mangabeira , no entanto, escreveu vários cantos de seu poema sobre a repressão que se abateu sobre Canudos e seus defensores, descrevendo-a sem denunciar os excessos praticados pelos militares, como a degola, camuflada por sua retórica. O ataque sem tréguas a Canudos é descrito assim:

“Mais tarde, quando o dia/As brumas da amplidão nostálgica rompia,/A cometa soou, longe, nos descampados.../Sublimes de valor, ergueram-se os soldados/Ao primeiro sinal de combater, e logo/A metralha rugiu em explosões, de fogo/,Que estrondavam no espaço, esboroando casas,/Entre nuvens de pó, de escombros e de brasas./Os hórridos canhões, postados sobre os montes,/Lembravam legiões negras de mastodontes,/De cuja boca ardente a destruição voava/Aniquilando tudo aquilo que encontrava/Diante de si... O céu enrubescia quando/Eles iam a goela horrenda escancarando, /Num vômito de chama. Os seus enormes roncos,/Que faziam saltar pedras, homens e troncos,/Seus brilhantes clarões purpúreos e assombrosos,/Que incendiavam o espaço e os montes silenciosos,/Produziam um medo acentuado e interno,/Como se aquilo fosse um esboço do inferno./Os ígneos projéteis vertiginosamente/Atravessavam o ar, batendo de repente/Nas casas que, aos montões, iam caindo, numa/Nuvem de pó que, como impermeável bruma,/Cobria tudo em torno... Achavam-se estilhaços/De paredes, de mãos, de pedras e de braços,/No úmido chão. No entretanto, as legiões opostas/Lutavam sem recuar, firmes e bem dispostas,/Com a ânsia dos leões que morrem combatendo,/Pois quem tomba a lutar – vence, embora perdendo./A todos espantava o desespero insano,/Assombrador, feroz, incrível, sobre-humano,/Com que o bravo adversário, enraivecido e forte,/Afrontava o perigo, a destruição e a morte,/Escondido em covis, em buracos e em valas,/Para lutar melhor e abrigar-se das balas./Afinal, os canhões calaram-se e, dos flancos,/Da cidade sitiada, em ríspidos arrancos,/Os soldados então desceram, suspendendo/As baionetas de aço, e foram envolvendo/O adversário infeliz num círculo de lanças,/Cada vez mais estreito. Os velhos e as crianças, /Não podendo correr, morriam transpassadas/Pelas armas. E sempre, em ordem e animadas,/Seguiam para adiante as forças legais, cheias/De intrepidez, com o sangue a referver nas veias../Caíam em porção do monte sobre o fosso/Os sitiantes leais que, em íntimo alvoroço,/Olhavam para o ponto onde tremiam, belas,/As bandeiras da Pátria, enfeitadas de estrelas././././ O adversário, que a fúria imensa da metralha/Dizimara, apesar de exausto, não cedia/Um só palmo de terra e, quando algum caía,/Os companheiros logo o apunhalavam para/Não ser aprisionado... Heroicidade avara!/Os fortes batalhões premiam pouco a pouco,/O adversário que, audaz, inconsciente e louco,/Resistia, lembrando em seu constante aferro/Um touro a revolver-se entre grilhões de ferro./Um assombro! As legiões armadas prosseguiam/Na investida, pisando aqueles que morriam, /E a mergulhar os pés em borbotões de sangue./././. / Ao muito destemido exército pujante/Que, cada vez mais forte, ia avançando. Nada/O aterrava. O adversário, então, vendo fanada/A esperança, dispôs uma fogueira horrível/E esperou. Logo após se viu o mais terrível/Quadro: velhos, de olhar horrífico e severo,/Jogavam-se no fogo; homens com desespero,/Lançavam-se também por entre as brasas quentes,/Crispa as mãos, olhando o céu, rangendo os dentes./Com as carnes a chiar incendiada pelo/Fogo que lhes torrava os olhos e o cabelo.../As mães, sentindo na alma impetuosas flamas,/Com os filhinhos no colo, atiravam-se às chamas.../Era um drama de dor aquele atroz martírio,/Como um sonho horroroso em noites de delírio!/No entanto, mais adiante aquela gente bruta/Provocava de novo a encarniçada luta.../Inda outra vez o solo enchia-se de mortos/E feridos que ali, cheios de desconfortos,/Choravam, não de medo, e sim porque num sonho/Eles viam surgir o passado risonho,/Quando em seus corações desabrochavam calmas/As ilusões, assim como em Setembro as palmas/Se enchem de flores... Tempo abençoado e leve,/De repente, o rumor estúpido e selvagem/Do combate os detinha em meio da viagem/Que faziam da infância à atualidade. Tontos, /Dirigiam o olhar para todos os pontos, /E viam no ocidente o sol cair tranquilo, /Mostrando-se, portanto, indiferente àquilo. ///

  Mangabeira descreveu o “esboço do inferno”, que a “metralha”, os “hórridos canhões” e as “baionetas de aço” criaram ao atacarem Canudos, provocando “estilhaços de paredes, de mãos, de pedras, de braços” e “borbotões de sangue”. Reconheceu no canudense um “bravo adversário” que, “apesar de exausto, não cedia um só palmo de terra (...) Um assombro!”.

  No ano seguinte, 1901, o jornalista Lélis Piedade coordenou e publicou o “Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia”. Lélis Piedade não pode omitir-se em relação à repressão militar:

“São cruéis, têm as feições da mais completa ferocidade as que os jagunços cometem contra os nossos soldados, cujas vidas eles arrancam à traição e em cujos cadáveres cevam, num requinte selvagem, todo o seu ódio. Queria, no entanto, que nós não imitássemos essas perversidades. Alguns soldados, não obstante a recomendação de chefes, cometeram horrores contra jagunças e contra menores de ambos os sexos, matando-os cruelmente”. (p.193); “Na porta de um outro telheiro fomos ver, então, três jagunços, amarrados, de caras repelentes, (criminosos), principalmente a de um caboclo em cujas olhos parecia ler-se o quanto de ódios iam naquela alma ignorante e fanática. A hora em que partimos vimo-los seguir para a caatinga, a fim de receberem a gravata vermelha. O leitor sabe o que significa esta gravata vermelha? A morte.” (p.198); “Hoje a quem passar por Canudos parecerá que por ali fez-se um grande roçado. Nem um só esteio está de pé. Tudo é ruínas, em sua mais completa acepção” (p.201).

  O tenente Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares, que lutou em Canudos,publicou A guerra de Canudos”, em 1902. Sobre a destruição de Canudos, o tenente Henrique Duque-Estrada observou espartanamente, laconicamente, como um militar cumpridor de ordens superiores:

“(…) Foi decidido que nem uma parede se conservasse de pé, nem uma estaca sequer, lembrando ter existido o formidável reduto. Para sua completa destruição foram dadas as respectivas ordens e, ao amanhecer de 6, centenas de soldados começaram a afanosa tarefa, amontoando paus, caibros, vigas, ateando-lhes fogo, reforçado com os milhares de corpos perdidos entre as ruínas. Tudo foi demolido, arrancado e queimado: o arrasamento foi completo. Sob os alicerces das igrejas foram estabelecidas minas, que, explodindo com reboante estrondo, fizeram voar massas enormes de granito, terra e areia. (…) No dia 10 tudo mais havia desaparecido. Fora terrível o castigo imposto aos perturbadores da ordem e dificilmente os próprios fanáticos sobreviventes reconheceriam os lugares das antigas habitações.” (p.229).

  Essa era a visão oficial da guerra dos guardiães da ordem. Duque-Estrada descreve a destruição completa de Canudos à base de fogo e de tiros de canhão, omitindo a degola de prisioneiros, e justificando-a como um “castigo imposto aos perturbadores da ordem". Essa era a "Ordem e Progresso" da República que a civilização, por meio dos militares, levou para os bárbaros do sertão... Duque-Estrada deixa clara a intenção de riscar Canudos do mapa, para que, com o tempo, também fosse sendo apagada da memória e caísse no esquecimento, o que o livro de Euclides da Cunha impediu que acontecesse, felizmente.

  O sergipano Manuel Pedro das Dores Bombinho, que acompanhou a quarta expedição a Canudos como fornecedor, escreveu o longo poemaCanudos, história em versos”, num total de 5.984 versos, divididos em quatro partes, em 1898. Bombinho, apesar de ser contra Antônio Conselheiro, os jagunços e Canudos, indignou-se e não se conteve sobre a repressão militar, denunciada em seus versos:

“Pacheco comandante do piquete/ Assaltou a posição do inimigo/ Cercou com coragem e muito tino/ E consultou ao Teles seu amigo// O que devo fazer de uns jagunços/ Que os prendi e se acham encurralados?/ Degola degola em continente (sic!)/ Em continente foram todos executados/ (p.255); (…) a luta era forte e mais que forte/ Os jagunços eram duros de acabar// (p.278) Na passagem do rio, ou mais adiante/ Eram logo chamados um por um/ Degola tal canalha já e já/ Que não fique da canalha aqui nenhum.// (p.331), Crueldade inaudita e monstruosa/ Foi aquela que ali se viu então/ Os jagunços eram todos degolados/ Não faziam parte da Nação// Ignorantes e de baixa classe eram eles/ Na força predominou a crueldade/ Que vergonha meu Deus para o país!/ Foi tais cenas para nós fatalidade.//” (p.333)

  O livro “Os sertões”, de Euclides da Cunha, engenheiro e tenente reformado do Exército, foi publicado no dia 2 de dezembro de 1902. Euclides da Cunha descreveu a degola de prisioneiros canudenses pelos soldados:

Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão. Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido... Tínhamos valentes que ansiavam por essas covardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades. Desvendemo-las rudemente. Deponhamos. O fato era vulgar. Fizera-se pormenor insignificante. Preso o jagunço válido e capaz de agüentar o peso da espingarda, não havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. Um ou outro comandante se dava o trabalho de um gesto expressivo. Era uma redundância capaz de surpreender (...)Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e crianças (...) Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente (...) A repressão tinha dois pólos – o incêndio e a faca (...) Não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali (...) E lá não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos(...) Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava (...) A animalidade primitiva, lentamente, expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro” (p.378 e 379). "Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente."

  Dessa forma, só depois de terminada a guerra de Canudos é que começaram algumas denúncias contra os excessos praticados e os mitos que os justificaram, mas estes resistiram, prolongando-se através do tempo em muitas opiniões, pelo jeito, até hoje, totalmente destituídos de fundamentos. Horcades denunciou a politicagem, as degolas de prisioneiros, prisioneiras e crianças, as vinganças, o “banditismo”, os “barbarismos” e “crimes monstruosos” praticados pelos militares, as execuções feitas sem julgamento, o desrespeito aos direitos mais elementares, a política de terra-arrasada contra Canudos e o mito de existirem ali agentes interessados na restauração da monarquia, enfim, tudo aquilo que Euclides chamaria de “crime contra a nacionalidade” em seu livro “Os sertões”, publicado em 1902. Horcades ironiza “o belo exemplo de civismo e de progredimento social” dado pelos republicanos. Essa era a ideologia republicana que proclamava o lema “Ordem e Progresso”, de inspiração positivista, levada pelos soldados ao sertão baiano, e que justificou todos os crimes em nome da “civilização” contra aqueles que representavam, segundo ela, a “desordem”, o “atraso” e a “barbárie”.

  Nestas obras encontramos, com poucas exceções, a persistência dos mitos e versões históricas oficiais a serviço dos interesses dos grupos políticos e sociais dominantes naquela época contrários a Canudos (militares, fazendeiros, clero católico, coronéis, autoridades, etc.), e que repetiam o que havia sido dito e escrito sobre Antônio Conselheiro (desde 1874), os sertanejos e Canudos (desde 1893 até 1897), e amplamente divulgado pela imprensa nacional durante o conflito. Com exceção de Nina Rodrigues e de Euclides da Cunha, que procuraram embasar suas opiniões em bases científicas vigentes naquela época, tais autores quase sempre ficaram apenas no relato, na descrição dos fatos, sem interpretações aprofundadas, dando opiniões isoladas, fazendo alguns protestos veementes, sem colocar o episódio dentro de uma perspectiva regional ou nacional, deixando-o circunscrito a si mesmo, reproduzindo opiniões comuns, emocionais, sem crítica, sem base científica, sem suportes teóricos, impressionistas, subjetivas, psicologizantes. Euclides da Cunha conhecia tais obras, partilhava de certas opiniões, e aproveitou alguns argumentos, mas seu livro era diferente dos demais, superando-os quanto à forma, o conteúdo e o significado, e consagrando-se como obra capital para entender não só o conflito sertanejo, mas também as contradições estruturais da formação brasileira.

  O que diferenciou o livro Os sertões, a décima obra publicada sobre o conflito sertanejo, dos demais foi que Euclides procurou entender e explicar a guerra sertaneja não só descrevendo os fatos, mas também procurando interpretá-los dentro de uma perspectiva científica, recorrendo às ciências exatas e humanas da época, criticamente, objetivamente, racionalmente, inserindo-a num contexto amplo, panorâmico, regional e nacional. A escrita euclidiana, apoiada nessa metodologia, elevou-se da linguagem jornalística simplificadora e circunstancial para uma linguagem literária e científica de alto nível que impressiona até hoje, embora os conceitos científicos tenham esmaecido e sido superados por outras interpretações com o passar do tempo. Chocado com a brutalidade dos vencedores, Euclides considerou a campanha de Canudos como “um crime contra a nacionalidade” e procurou entender suas razões profundas, como sugeriu Afonso Arinos num artigo publicado quatro dias após o fim da guerra. Euclides fez uma análise dos aspectos históricos, sociais, geográficos, políticos, militares, climáticos, geológicos, culturais, religiosos, etc., como nunca ninguém fizera antes em nossa literatura em relação a nenhum acontecimento. Sua interpretação baseou-se em conceitos de pensadores europeus, principalmente, mas que viviam em outra realidade histórica, a da Europa industrial que justificava sua expansão imperialista na África e na Ásia com ideias racistas que faziam a apologia da civilização branca europeia e do progresso material, contra as “raças” negra e amarela que representariam o atraso e a barbárie. Euclides da Cunha assimilou muitas dessas ideias para explicar a guerra contra Canudos usando tais conceitos estranhos à nossa realidade, que era a de um país que não superara suas estruturas coloniais, mas ultrapassando-os com suas próprias intuições, elaborando opiniões inéditas sobre o país, denunciando a guerra e suas barbaridades, e retratando seus principais participantes.

  Euclides da Cunha pensava que “a guerra é uma coisa monstruosa e ilógica em tudo”, considerando a guerra de Canudos como “a luta mais brutal dos nossos tempos” (p.517). Em suas cartas aos amigos, anteriores e posteriores à publicação do livro Os sertões, Euclides também consignou elogios a Antônio Conselheiro e os canudenses.

*

Finalizando: No início da entrevista, o jornalista Fabiano Maisonnnave opinou o seguinte: “Sobra pouca vontade de revisitar “Os Sertões” após a leitura do recém-lançado “Euclides da Cunha: uma Biografia”. Desconhecemos se o jornalista leu outras biografias sobre Euclides da Cunha, como as de Silvio Rabello, Roberto Ventura (inacabada pela morte precoce do escritor, infelizmente) e de Frederic Amory, no mínimo. De nossa parte, continuamos e continuaremos entusiasmados com a leitura do livro Os sertões, descobrindo nele infinitos caminhos e temas para pesquisar e desenvolver para ajudar a compreender suas mensagens. E que apesar das críticas favoráveis e desfavoráveis que sofre há 119 anos, desde quando foi lançado em 1902, ele é indispensável para nos entendermos como povo e nacionalidade, ele é a nossa defesa contra o crime que praticaram contra nossos antepassados e impede que outros aconteçam na mesma proporção. Desde a sua publicação, nunca o livro Os sertões foi censurado ou proibido, mesmo nos períodos mais obscuros de nossa vida política. Se isso acontecesse, seria como decretar o desaparecimento de nosso país e de sua identidade. Pudera o Brasil ter outros Euclides da Cunha para denunciar com coragem, como ele fez, outros episódios trágicos e sangrentos, como a guerra dos negros de Palmares para viver em liberdade, as lutas dos escravos para libertar-se durante quase quatro séculos, as revoltas coloniais contra a dominação portuguesa, os movimentos de libertação entre a Inconfidência Mineira de 1789 e a Revolução Pernambucana de 1817, as revoltas do período regencial (1831-1840), a Revolta Praieira de 1848, a guerra do Contestado (1912-1915), entre outras, mas infelizmente ele foi único, e nos legou, em que pese suas falhas, um dos livros reconhecidamente mais importantes de nossa literatura, Os sertões. O norte-americano Frederic Amory, biógrafo de Euclides, talvez tenha feito um comentário justo sobre a importância de Euclides e de Os sertões para a cultura brasileira: “A ponte (reconstruída por Euclides em São José do Rio Pardo) permaneceu por cem anos, até hoje, sem mudanças, enquanto sua antecessora caiu em dois meses, e o livro durará enquanto a português for uma língua viva.” (p.154)

  Especialmente ao jornalista oferecemos um painel parcial com juízos feitos sobre o livro “Os sertões” desde a sua publicação, em 1902. Livro que têm sido considerado como “livro notável” ( José Veríssimo), “livro extraordinário” (Medeiros e Albuquerque), “de alto valor científico, histórico, moral e literário”, “emocional” (Afonso Celso), “poema enorme” e “tremendo libelo”( Coelho Neto), “um dos livros máximos da língua portuguesa” (Silvio Romero), “livro falso” (Mario de Andrade), “livro grave”(José Maria Bello), “livro vulcânico” (Oliveira Lima), “verdadeiro monumento de nossas letras”( Manuel Bandeira), “o Livro” (Guilherme de Almeida), “livro monumental” (Augusto Frederico Schmidt), “epopéia em prosa” (Afrânio Coutinho), “livro atormentador, ímpar, atrevido e soberbo” (Câmara Cascudo), “poema brasileiro até a raiz” ( Paulo Dantas), “livro genial” (João Etienne Filho), “mito” (Wilson Martins), “uma das obras supremas da literatura mundial” (Paulo Francis), “uma assembléia de estilos, um comício de formas e procedimentos literários” e “polifônico (Franklin de Oliveira), “fundador da cultura brasileira” (Gerardo Mello Mourão), “tratado mitológico” (Júlio José Chiavenatto), “manual de latino-americanismo” (Mario Vargas Llosa), “De livro vingador, Os sertões acabou se transformando em uma barreira para o conhecimento histórico da comunidade criada por Antônio Conselheiro” (Marco Antonio Villa), “livro-catarse” (Percival de Souza), etc.

  Euclides da Cunha, por sua vez, tem sido considerado “gênio”, “poeta”, “artista”, “áspero historiador dos bárbaros”, “gênio americano”, “escritor barroco”, “artista da poesia pura”, “mito”, “descobridor dos sertões”, “paladino de todos os deserdados”, “Estupendo”, etc.

  Convém assinalar que Os sertões está traduzido em cerca de 25 línguas diferentes, entre elas o chinês, o inglês, o sueco, o alemão, o holandês, o espanhol, etc. E nunca podemos esquecer aquilo que disse dele o ilustre professor José Calasans em 1986: “(...) discutir Os sertões é coisa para séculos.” Esse é o destino dos grandes livros, como a Ilíada e a Odisséia de Homero; a Divina Comédia, de Dante Aleghieri; As Mil e Uma Noites, de autor desconhecido; Os Lusíadas, de Luís de Camões; Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes; Hamlet, Mcbeth, Othello e Rei Lear, de Shakespeare; Fausto, de Goethe; Guerra e Paz, de Tolstói; As aventuras As aventuras de Huckelberry Finn, de Mark Twain; Os Miseráveis, de Victor-Hugo; Os sertões, de Euclides da Cunha, entre outros.  Essas obras primas literárias são lidas e estudadas há séculos porque representam o espelho das nações onde foram criadas, e como obras de arte venceram o Tempo, se tornaram universais e eternas e elevaram os nomes de seus autores à glória perene.





Rua Marechal Floriano, 105 - Centro
São José do Rio Pardo - SP - CEP: 13720-000
(19) 3608 1022